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>> Colunistas > Lázaro Freire
* Ayahuaska, daime, DMT - Droga ou Religião? (riscos do santo daime X respeito a fé) Publicado em: 22 de março de 2010, 13:10:04 - Lido 6632 vez(es)
Segue uma síntese e revisão dos principais pontos - favoráveis e contrários - do debate na Voadores sobre Santo Daime, Ayahuaska e outros chás à base de DMT, psicoativo proibido em 183 paises do mundo (incluindo o Brasil), mas tolerado ou legalizado em alguns paises (incluindo o Brasil) quando diluido em chás ritualísticos de contextos religiosos específicos, visando favorecer os fenômenos espirituais. - Defendo o respeito à RELIGIÃO, seja ela qual for. Mas isso não é o mesmo que ignorar os efeitos de uma substância (daime, hoasca, ayahusaka, chá de DMT) usada nos ritos de Santo Daime (uma religião). Minha crítica se dá no campo físico, químico e psicológico - e não na esfera da crença religiosa atribuida aos efeitos posteriores. Os fins não podem ignorar os meios.
- O xamanismo é uma tradição válida ancestral, que em certas ocasiões especiais fazia uso de alucinógenos (enteógenos). Entretanto, isso se dava dentro de um contexto (nada urbano), após o iniciado se mostrar preparado, e não raro passar por difíceis provas físicas, psicológicas e espirituais. A ayahusaka é UMA DAS substâncias rituais, não o substituto de qualquer xamanismo, e é anterior à sua apropriação sincrética por seringueiros. Ainda assim, no contexto da amazonia cristã, faz todo o sentido. Só a viagem de 8 horas de barco até o Céu do Mapiá já é uma preparo e imersão. Bem diferente de alguns usos urbanos, muitas vezes condenados pelos daimistas sérios originais.
- Sou, portanto, a favor da preservação dos ritos amazônicos originais em contexto ídem, mas sou contrário à popularização urbana indiscriminada fora de contexto - que se faz, por exemplo, nas periferias das grandes cidades, seu "público alvo".
- Daime abre as portas do inconsciente. Pode ser bom ou ruim. Nem todos estão preparados para lidar com isso. Não é por acaso que nossos mecanismos psíquicos tem o nome de "defesas". Jung lembra que a neurose é uma cura, e não raro levamos 10 anos a desenvolvendo, justamente para evitar a psicose. Tomar daime para alguns traz o risco de retirar as colunas psíquicas... e fazer o teto cair sobre suas cabeças. È preciso estar preparado, como todo xamã (autêntico) sabia.
- Daime contém DMT e é droga, como maconha, açúcar, LSD, café e cocaina. Mas é de um tipo específico de droga que provoca delírios, mirações e alucinações significativos momentos após ingestão - as drogas alucinógenas.
- O termo "enteógeno" é um eufemismo não oficial que só é usado pelos defensores, e significa na prática uma finalidade para o alucinógeno, não uma classificação química. Foi cunhado pelos adeptos de Timothy Leary, Stanilav Grof e Robert Anthony Wilson, eles mesmos defensores e usuários assumidos do LSD nos anos 60-70, para os mesmos fins do daime.
- Daime pode ser mais forte (em efeitos e duração) do que a maioria das drogas recreativas, mas é diferente de maconha, cocaina e outras pela intenção, por não haver associação com o narcotráfico e crime. As pessoas em tese usam daime para fins pacíficos e religiosos, e isso faz toda a diferença. Mas não isenta uma minoria dos riscos da substância.
- Em que pese a maioria de daimistas sérios, infelizmente uma droga forte, barata, aceita socialmente e liberada tem atraído para as casas muitos (quase todos) usuários de drogas mais perigosas, nem sempre com intenções tão espirituais assim. Creio que os daimistas deveriam se preocupar mais com essas associações, ao invés de se iludirem com a boa intenção de achar que "estão tirando todos esses das drogas". Às vezes sim, e isso é louvável. Mas sempre, não.
- Raciocinio similar se aplica a psicóticos. Nem todas as visões de psicopatologias são "espirituais"! Sentindo-se rejeitados pela sociedade, sentem-se acolhidos em um lugar onde qualquer visão será aceita. Os bons daimistas não tem culpa, mas é óbvio que a proporção de usuários de drogas ilícitas ou portadores de psicopatologia tente a ser bem maior em casas de daime do que em outros segmentos da sociedade e espiritualidade. Isso exige, no mínimo, um cuidado maior.
- Conheço daimistas excelentes que já eram pessoas excelentes antes do daime. E conheço pessoas complicadas que, embora se declarem iluminadas, continuam tão ou mais complicadas após a ingestão do alucinógeno. Há também os que melhoraram após o daime, mas mais pela busca espiritual e atitudes fora da roda do que apenas pela ingestão. Logo, não é a substância que faz a diferença, e sim a consciência. Por isso, podemos discutir a substância em si, sem afetar a fé ou o caráter de ninguém.
- Com ou sem daime, o fundamentalismo é a morte de qualquer discernimento. E infelizmente há daimistas fundamentalistas, assim como ocorre em qualquer religião. Religião já é algo complicado - e, às vezes, nocivo - quando a fazem em nomes de mestres como Jesus, Buda ou Krishna. Imagine então quando a fazem para cultuar um cipó alucinógeno. Não confudamos o humano com o divino, nem os meios com os fins. Nem todo daimista é fundamentalista e proselitista, mas os que são prejudicam em muito os sérios nesse caminho.
- Não falo sem conhecer. Como psicanalista, espiritualista e pesquisador, já experimentei ayahuasca mais de uma vez, e em locais diferentes. Também pesquisei algumas outras drogas, e acompanho pacientes e relatos de várias substâncias. Conheço tanto a estrutura do contato "divino" alegado, quanto o efeito das drogas, quanto o que caracteriza uam esquizofrenia ou psicose. Não há resposta simples, mas me parece que o daime é droga E religião, sendo necessário discernir os limites e campos de cada uma.
- Temos relatos de que em muitas casas, o daime é dado a crianças, bebês e gestantes, menores e portadores de psicopatologias.O argumento de alguns é que "daime é luz, deus é luz, e luz nunca faz mal". Eu mesmo já vi, em uma casa em que fui, uma criança de cerca de 8 anos correndo alucinada de braços abertos e olhos aterrorizados. O próprio pai teria dado a droga para o filho. Fiquei indignado, achei que era raro. Nunca mais voltei lá. Trabalho por meses em psicanálise clínica para identificar um traumas bem menores e menos duradouros que esse, sofrido na infância. Não tenho palavras para avaliar o risco e a gravidade desse tipo de atitude "paterna".
- Como psicanalista, atendo diversos ex e atuais usuários de daime que me procuram com sintomas e desconfortos. Boa parte me encontra pelo google, ao procurarem especialistas quando pesquisarem Daime em conjunto com doenças, riscos ou quadros. Por isso recebo o que muitos não querem ver. Em minha estatística particular, coerente com a de alguns colegas, parece haver um favorecimento de quadros de FOBIAS, SÍNDROME DO PÂNICO e BIPOLARIDADE mais frequentemente; e, em casos mais graves, desrealizações, dificuldade na funcionalidade cotidiana (afetiva, profissional, humor, acadêmico, familiar) e psicose (presença de delírios e alucinações).
- Um quadro psicótico ou patológico não nasce da noite para o dia, mas sempre depende de um trauma forte como gatilho. Antes de alguém psicotizar, quase sempre parece normal a olhos não-clínicos. O risco das drogas - especialmente as que dão acesso aberto ao inconsciente, como o daime - é o de fornecer esse gatilho traumático. A pessoa precisa "enxergar" experiências passadas que seus mecanismos de defesa reprimiram (sabiamente, segundo Jung, para assim com a neurose evitar a psicose).
- Não basta perguntar ao candidato - que viajou até ali, ás vezes acompanhado, e não quer voltar - se ele se considera ou não "apto" a tomar o chá. Boa parte dos questionários existe mais para preservar a casa de eventuais processos do que para orientar ou triar o usuário - basta ler os termos.
- Um alerta que faço é que, após o governo declarar que o daime não pode ser ministrado a quem toma remédios psiquiátricos, alguns usuários tem interpretado equivocadamente, e simplesmente suspendido ou evitado medicação séria, trocando pelo daime, uma vez que se consideram "tratados" por algo que "curaria tudo". Pode ser perigoso. Deveria ser mais explícito que quem tomou ou toma remédios assim jamais deveria procurar o daime, a não ser com indicação e acompanhamento médico ou psicológico.
- Recebi recentemente um caso onde um rapaz tomou daime, e entrou em forte crise emocional. Um mês após a experiência, o jovem ainda apresentava sintomas de síndrome do pãnico, e variações significativas de humor. No dia do rito, passando mal, ele e sua acompanhante procuraram ajuda, mas não havia ninguém sóbrio, e não puderam deixar o local para procurar médico ou hospital. Me parece sério se, qualquer que seja a indisposição relata, alguém sob efeito de substâncias proiba as pessoas de procurarem hospital. Recentemente tivemos um caso de ataque cardíado em Goiás, infelizmente fatal.
- O caso do adolescente acima é o mesmo de muitos que me procuram. Talvez houvesse predisposição latente para o pânico, mas as visões fortes do daime foram o gatilho (sempre necessário) para o quadro.
- Reconheço que daime pode substituir com vantagens algumas drogas mais fortes. Tenho pacientes que largaram cocaina com ajuda de daime - mas pelo menos um desenvolveu síndrome de pânico pouco após a experiência. Ironicamente, o pânico faz tomar drogas que causam dependência química. Ainda assim foi um progresso, pois tudo isso - daime, pânico, rivotril - é menos nocivo que a associação a drogas fortes.
- Há estudos médicos que associam maconha com favorecimento de esquizofrenia. Atinge apenas pequena parte dos usuários, mas como muitos usam, qualquer 1% passa a ser significativo. Com a expansão urbana e descontrolada do daime "para todos", corremos o risco de estarmos presenciando algo similar. Sem controle ou debate, os casos podem aumentar.
- Proibir a maconha e liberar o daime pode ser uma hipocrisia. Daime é muito mais intenso. Se a sociedade se considera liberal a ponto de liberar chás de DMT, ótimo, então precisaria liberar também fumos a base de THC. Se a sociedade se considera conservadora a ponto de proibir a maconha, deveria restringir o uso do daime também.
- Como filósofo, sou a favor da liberdade individual - desde que, sartrianamente, com responsabilidades. Não me agrada um estado que resolve escolher ou proibir pelos cidadãos aquilo que "faz bem" ou não somente a mim - sejam cintos de segurança, cigarro, maconha, daime ou batatinhas fritas. Mas há limites éticos mais complexos quando isso interfere na saúde, quando afeta o juizo próprio, quanto interfere na saúde pública, ou quando coloca em risco outras pessoas.
- Liberar entorpecentes não significa dispensar controle, debate e fiscalização, muito pelo contrário.
- Para fazer musculação, é necessário um atestado emitido por profissionais. Para trabalhar em um escritório, é preciso um exame médico admissional e demissional. Não se pode sequer nadar em uma piscina sem uma avaliação profissional. Mesmo para remédios conhecidos e estudados, não podemos pegar na farmácia a nosso bel prazer. Porque só o uso de alucinógenos - mesmo que liberados - deveria ser indiscriminado?
- Eu mesmo já percorri caminhos espirituais e tive expansões da consciência - sem auxílio de drogas. Sei de relatos parecidos com o daime, mas sei na prática (e na clínica) que nem todos estão prontos para acessar tudo (da mente ou fora dela) sem preparo. Por isso tenho um bordão em relação ao daime: "Quem pode tomar, não precisa. Quem precisa tomar, não pode."
- Os próprios daimistas originais tem um bordão parecido, ainda que invertido: "O daime é para todos, mas nem todos são para o daime."
- Vivemos um tempo do imediatismo. Amores líquidos, relações trabalhistas ou afetivas temporárias, culto ao estético e ao prazer. É preocupante que o novo Deus dessa época seja também obtido após um simples pagamento e ingestão. Há um risco de estararmos iniciando uma época da "espiritualidade líquida", um "fast-food" da iluminação.
- Conheci bons trabalhos de daime, que seriam ótimos trabalhos espirituais mesmo sem o daime. Conheci alguns usos equivocados de plantas de poder, onde o daime não "salva" a intenção, talvez até o contrário. Ou seja, o que faz diferença nesse caminho espiritual são os sentimentos, pensamentos e atitudes das pessoas, e não aquilo que elas tomam em seus rituais. É preciso cuidado neste equívoco de se confundir o meio com o próprio Deus ou religião.
Usando o BOM-SENSO, podemos deduzir uma lista de estados onde o daime seria CONTRA-INDICADO, não pelo lado religioso, mas pela lógica em relação àquilo que há na planta, sendo "liberada" ou não. Se Ninguém daria açúcar para um diabético nem uma garrafa de café velho e frio para alguém com crise de úlcera, é MUITO MAIS ESTRANHO pensar em ministrar alcalóides alucinógenos-enteógenos (como o DMT) associado a fortíssimos inibidores da MAO (como os adicionados no chá para inibir o metabolismo do DMT) a pessoas portadoras de: - doenças cardíacas (houve uma morte recente em Goiás) - problemas de pressão arterial (há variações significativas durante o transe) - bipolaridade, que atinge 2% da população na forma mais grave e até 10% em estruturas depressão-euforia (não se pode usar antidepressivos e iibidores da MAO neles, pode induzir mania e hipomania) - síndrome do pânico (atinge 3,7% da população, fora casos não documentados) - quem tomou recentemente remédios para emagrecer (quase todos usam anfetaminas, às vezes concomitante com benzodiazepínicos) - quem tomou ou toma remédios psicoativos, neurolépticos, estabilizadores de humor, antidepressivos e outros que atuem diretamente no cérebro ou no sistema nervoso central) - pessoas que, embora sem diagnóstico médico, possuem suspeitas de que DEVERIAM tomar os medicamentos do ítem anterior (pré-disposição aos quadros psicopatológicos) - usuários de drogas (maconha, cocaina, ectasy, alcóolatras, etc) por risco de associações, ou desvirtualização da intenção do uso do chá. (alguns podem se beneficiar do chá, outros não, é necessário acompanhamento profissional). - Pessoas com históricos de delírios ou estruturas psicóticas (motivos óbvios, seria como "jogar gasolina no incêndio". - Menores de 18 anos (há perda da consciência superior à do álcool que lhes é proibido) - Obviamente, crianças, bebês e gestantes (cérebros em desenvolvimento). Conheço casas sérias onde há tentativa de triagem de casos assim. É um progresso. Mas note que, infelizmente, raramente o entrevistador tem estudos médicos, psicanalíticos e psiquiátricos para avaliar minimamente esses ítens.
- Sou fundador e coordenador do maior grupo de discussão mundial sobre Espiritualidade e Filosofia no Cotidiano, a Lista Voadores do Yahoo, http://lista.voadores.com.br com 7400 membros ativos atuais, e mais de 25.000 participantes e 100.000 mensagens nos 10 anos de existência. Coordeno debates ecumênicos há tempos, e recebo relatos - favoráveis ou nem tanto - de todas as denominações e céus. (Os textos que vocês viram inicialmente são apenas publicação em um site homônimo de algumas das melhores respostas na lista).
- Sou também psicanalista transpessoal (a área da psicologia que investiga os fenômenos transcendentes e espirituais) e licenciando em filosofia pelo Seminário Paulopolitano (ou seja, enfoque especial em Filosofia da Religião).
- Por publicar esclarecimento, já recebi ameaças pelo site. Bons daimistas me esclarecem que isso não representa a doutrina, ao contrário.
Não falo por falar. Não sou dono da verdade, procuro progredir sempre meus pensamentos - mas minha opinião é embasada por anos de estudo, práticas e atendimentos. Posso mudar alguma opinião amanhã, que bom - portanto, verifique com o bom senso, e veja se o que digo acima faz sentido para você, independente do discurso monotônico religioso. Evidentemente, não escrevo tentando converter fundamentalista algum. Se você já está "fechado" com o daime ou com qualquer religião, ótimo, faça o melhor proveito possível dela. Esclareço mais aqueles que não tem um compromisso religioso a priori, ou que desejam saber mais sobre aquilo que lhes foi oferecido. -- Lázaro Freire lazarofreire@voadores.com.br
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